Por Fernanda Lopes
A expressão “meu Deus!” não sai da boca por convocação celestial. Sai porque a língua é caprichosa, feita de repetições, hábitos, fórmulas prontas. A gente aprende “Deus me livre!” antes mesmo de entender o que é “livre” — quanto mais “Deus”. Verdade seja dita, a língua nos amarrou essa corda no pescoço antes de aprendermos o que era doutrina. E cá entre nós: o Brasil é uma fábrica de expressões religiosas. A gente tropeça na fé em cada esquina. Se não é “graças a Deus”, é “se Deus quiser”, “vai com Deus”, “Jesus amado”, “nossa senhora”, “pelo amor de Deus”… Dá até para fazermos um dicionário com esse vocabulário.
Claro, sempre tem o purista da coerência linguístico-teológica — aquele que acha que, se você não acredita em Deus, deve se expressar como um robô programado por Richard Dawkins. Como se a gente tivesse obrigação de viver num dialeto neutro, asséptico, imune à cultura que nos moldou. Ah, por favor. Deus me livre dessa patrulha da pureza verbal. A verdade é que essas expressões não dizem nada sobre o que a pessoa acredita ou deixa de acreditar. “Meu Deus!” é só uma maneira de expressar surpresa, de se dar conta de que algo inesperado aconteceu. Ninguém precisa ser devoto para dizer isso. Assim como ninguém precisa ser encantado por fadas para dizer que está “encantado”. A linguagem é cheia dessas contradições silenciosas.
A questão é que a língua é um vírus cultural — e nós todos estamos contaminados. Crescemos ouvindo essas expressões. Desde o berço, recebemos bênção da avó, ouvimos a professora falar “se Deus quiser”, e aprendemos que tudo de bom vem “graças a Deus”. Por mais que a gente se livre da religião, é difícil escapar da gramática emocional que ela deixou em nós. Somos todos filhos de uma cultura religiosa — mesmo quando somos órfãos da fé. Porque, veja bem, não se trata de fé ou razão. Isso é sociocultural. A língua nos molda e nos faz agir de formas que, muitas vezes, estão muito além do nosso controle racional. Eu não sou a dona da língua, assim como ninguém é. Ela nos habita, nos domina, nos faz, em algum nível, escravos do que nos foi dado.
Ademais, eu não sou ingênua o suficiente para acreditar que esse comportamento é um “deslize” da minha parte. Não. Não é um erro. Acontece porque, embora eu não tenha nenhum apego a qualquer crença teológica, ainda sou produto de uma sociedade impregnada pela religião. E aqui está a chave da questão: a linguagem não é uma escolha consciente, mas uma construção social que nos prende. O fato de eu soltar um “meu Deus!” não significa que, no fundo, eu esteja pedindo ajuda a uma divindade. Significa apenas que a cultura em que fui criada ainda pulsa dentro de mim. E, aliás, querendo ou não, estamos todos atrelados à mesma herança linguística que nos empurra essas expressões como reflexos involuntários.
Por fim, para quem acha que está sendo mais coerente, trocando “meu Deus” por “ai, universo” ou “pelo amor da ciência!”, vou te contar uma coisa: a coerência absoluta na fala é uma armadilha. Porque, no fim, nossa língua é fluida, imprevisível, e nunca será purista o suficiente para não carregar um pouco da herança cultural que nos envolve. Então, se você se sentir desconfortável com esse tipo de expressão, eu sugiro que, quem sabe, crie a sua própria – “pelo amor do Big Bang” ou algo assim. Ah, e boa sorte com isso.
Fernanda Lopes, Jornal Choraminhices.
Bom texto Fernanda meus Parabéns, seu texto tem estrutura de um Ensaio faculta um tipo de leitura um pouco diferente e requer uma Interpretação bem distinta de Café para Água, beleza ; sua Escrita não ofende, pelo contrário, distende atenção e expande possível para o Conhecimento.
Os alunos com certeza conhecem Dawkins para complicar mais, sim concordo com você quanto a Religiosidade do povo Brasileiro, vamos aos dados é uma nação majoritamente católica e 80% evangélicos dentro dessa perspectiva seu Ensaio / Artigo seria correto nesse Contexto estaria nesse parâmetro.